Dantes gostava muito duma brincadeira que consistia em perguntar a mim próprio: quem sois? Eu próprio me encarregava de responder, três vezes (três é o número fetiche de Rama (1), sois Rei, sois Rei, sois rei.
Lembrei-me a propósito das minhas ideias de encenar coisas. Encenar a cerimonia do chá no Oriente ou em Marrocos. Um bule à maneira, com motivos orientais, como convém. Qualquer dia ando a beber chá por canecas tradicionais Marroquinas. De hortelã ou hortelã pimenta e verde, não sei se produzido por eles, imagino que sim. E com um turbante enquanto tento recriar partes de mim, que não podem ir a Marraquexe. Mas o bule morreu e havia cá uma cântara, que também pode ficar a manter-se quente na chapa. Rei morto rei posto e nada de chorar sobre a cerâmica derramada.
O meu gosto pela pintura faz-me ter vontade de pintar. De ter um canto da minha sala transformado nisso. Com cavalete e tudo. Encher a minhas paredes de reproduções a meu gosto, esborratadas por mim. A menta que cá tenho é ácida, devia ter posto cidreira para esta noite de sossego.
Mas como sou tão ignorante sobre isso. Sobra-me a fruição, o dar por bem empregue um momento da noite, dos meus tempos livres. Criar coisas. Andar entusiasmado com passatempos.
Aquela reprodução do Kandinsky já tinha tudo preparado: pincéis tela e tintas. Tudo barato, tudo muito made in china (se trazemos de lá chás tão bons também temos que levar com o resto, eu não me meto nisso, é assunto complicado, relações internacionais e o raio...).
Não começou assim, começou com outras pinturas que desembocaram no caos das cores irrepetíveis, em molduras que vão ser espelhos (da alma, não da cara, que essa basta-lhe um hidratante e muitas gargalhadas para andar bem).
Nada parecido com o American Psycho.
Estava mortinho para pendurar aquelas obras primas (para mim são, pela determinação de imaginar coisas e as conseguir realizar, fazer, sentir, com as minhas próprias mãos. Esta casa vai ser kitada com abstracionismos e outros devaneios pictóricos), mas ainda não secaram e fiquei com as mãos todas pintadas com a confiança que agarrei nas tintas. Lá estão na estufa. Se calhar vou dar-lhe uma camada de geada... param ficarem com o efeito geada, ou atiro-lhes com areia. Tudo é permitido.
As formas e as cores dão-me muito gozo.
Ainda assim, só ontem reparei que em três quadros há círculos, não perfeitos como o do rondar de uma ave de rapina, mas erráticos. com cores quentes e tons pouco definidos. Rendez-vous com Rama volta inconscientemente de volta, materializando livros, arquitecturas de livros. O labirinto da mansão espacial da família Tessier-Ashpool (2) materializado em cores fortes, contrastes de almofadas de portas, escadas multicolores, divisões pequenas, labirinto de construção e reconstrução, de decorações que se miscigenam. Conversas sobre Agostinho da Silva com bolo de bolacha. Chás. Verde com cravinho.
Passear a sério é ir a algum lado e trazer de lá recordações boas, é tentar captar o ambiente, a disposição das pessoas, a maneira como se cumprimentam num sábado de manhã, o cão preto que se aproximava quando me abaixava para lhe tirar uma fotografia. As recordações das pessoas, dos anos que levam nisto, de viver, e eu que nunca tive a feliz ideia de ir àquela terra antes. Todos temos um monte de Saint Michel, mas o deles é a abertura da cena para o teatro das portas ombreadas por azuis e amarelos torrados, por plantas que trepam e dão a volta a janelas, as fontes e as raízes nos candeeiros soprados por Limão Verde.
E aqueles itinerários que dão nervos (só descanso quando vir a placa!) Mas as placas a indicarem as saídas das auto-estradas estão sem reflexo. Mal se topam sem os máximos. Mas as dos preços estão reluzentes. Estranha ironia, que havia de combater se pudesse.
É outro dos meus sonhos, processar o estado em tudo o que não é justo. Obrigá-los a colocar a sinalização como deve ser. A não cobrarem esgotos e e lixo a quem não gasta água.
(1) Rendez-vous com Rama, Arthur C. Clarke
(2) Neuromancer, William Gibson