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Revelia

05.01.16

Duas janelas para o mundo, ser cedo, mas ser igualmente tarde. Ela faz-se ouvir nos intervalos dos acordes, nas pausas entre canções, eu tento tocar piano mas isto parece-me um sintetizador. Atrapalho-me com a dicção, o ritmo dos dedos escorreito, mãos acessíveis de escriturário.

 

- «Mais cedo ou mais tarde irão ser os papeis que te vão tramar, escusas de ficar descansado.»

 

A contra-senso, ou contra-mundi. A chuva é responsável por inúmeros. O frio tornou-se psicológico. Os electrões estão mais próximos do núcleo, toda a condutividade permitida.

Pode ser da chuva extrema na janela, ou de alguma auto-ficção, de um mito finalmente urbano.

 

Gente esplêndida, no seu vestir. Nas suas vozes. A partir de uma improvável emissora manhosa do alto de uma torre. O arranha-céus possível da conspiração, modulada por qualquer coisa que não sou eu que faço, num estado de saber não sabendo, ao sabor deste beira mar sonoro.

 

Já venho, mesmo, não saio daqui ainda, mesmo que me falte tudo para amanhã, até disposição de ir já. As olheiras são piores que ervas daninhas, basta um pequeno descuido e ficam aqui a denunciar qualquer ilícito, mesmo que seja uma insónia. Ou revelia.

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8 – A felicidade começa depois das cinco

Para o Psicólogo o dia tinha sido muito mais proveitoso do que supusera. Não tinha nenhuma expectativa para além do que eventualmente a sua intuição prometera, que era um vago ronronar em si. Em concreto nada havia contra aquele cidadão. O facto de ser tão exemplar fora a primeira nota dissonante, como se houvesse ali alguma incongruência por não haver registos de acções reprováveis. O resto fora ir um pouco mais além das suas supostas atribuições, que ninguém supervisionava nem questionava, com a vontade de encontrar um caso verdadeiramente interessante. Algo que o pudesse libertar daquele estado de espírito. Que o entusiasmasse.

As expectativas superadas não elidiam a dúvida da exequibilidade daquele plano. Como é que conseguiria libertar Luís Sedas do controlo das substâncias, secretamente? Agora que finalmente tinha um case study não podia ir mais além porque os seus poderes supostamente não chegavam para o fazer de modo discreto.

Ficou no gabinete a beber um conhaque, que guardava na gaveta para momentos como este. Ele podia simplesmente ordenar que retirassem o Estado de Espírito. Não tinha que prestar contas das suas decisões. Não era auditado. Provavelmente quem executaria aquela ordem seria um Colaborador desses mais banais, que fazem simplesmente o que lhe ordenam, sem questionar nada. Podia enviar o relatório a ordenar a cessação do Estado de Espírito. Tinha que descobrir quem executaria tal acção e enviar-lhe-ia directamente as suas ordens. Em envelope lacrado digital com o cunho oficial do seu cargo. Estava feito. Aquele conhaque fizera, mais uma vez, maravilhas por si. Por causa dele e da remoção dos obstáculos do seu plano.

Para Luís Sedas, ainda sob o efeito do Estado de Espírito, versão Executiva, a expectativa não podia ser maior. Tinha que se conter, pois ainda ia trabalhar de tarde. Alguém já comentara que o seu ar mudara. Uma Colaboradora da Secção de Reprografia Quântica. Também notara olhares diferentes na rua. E por isso tinha mesmo que se conter e voltar ao seu estado autómato e eficiente. A felicidade começa depois das cinco.

Para Emilia, a felicidade também começava depois das cinco horas. As tarefas que executava eram rotineiras, tinha toda a informação na sua mente, por isso se tornavam aborrecidas. A sua vertente criativa estava abafada pelo Estado de Espírito, por isso não era muito difícil concentrar-se no que fazia, enquanto as horas decorriam com eficiência e prestabilidade. Os cidadãos eram todos muito correctos. Demasiado correctos, urbanos, afáveis. De uma afabilidade insípida. Naquele cenário o aparecimento de alguém como Luís Sedas não podia passar-lhe despercebido. O seu cheiro ficara-lhe nas narinas pela manhã adiante, enquanto estivera ali a escolher o peixe com toda a fleuma. Da segunda vez gostara de o ver e da sua afabilidade espontânea, o seu sorriso caloroso, e quando o vira na secção dos lacticínios fora ter com ele de propósito, sem que no momento que o fizera se tivesse apercebido disso. Quando ele se levantara e olhara para ela não teve dúvidas do que se poderia passar a seguir. O seu olhar começara a brilhar quando percebeu que era ela.

Estava em casa do Luís a maior parte do tempo, a fazer o que faria em casa, mas num contentamento, numa arrebatação, enquanto todas as dúvidas subsistiam, na camada racional, por aquela impulsividade toda. Que não era apenas sua, gozando do colaboracionismo dele. Em inventar toda a espécie de comida, em ver velhos filmes a preto e branco. Entardeceres de conversa, de partilha de experiências de vida, as mundanidades do dia-a-adia e as conversas subversivas dos Estados de Espírito. A aparente descontracção dele de manhã tinha-a deixado sossegada, mas ainda não sabia como aquela entrevista decorrera. Estava ansiosa por saber isso tudo. 

 

Havia na marginalidade clandestina dele algo de muito romântico. Se, como ele afirmava, podia ser muito melhor sem os Estados de Espírito, não conseguia imaginar como se poderia sentir melhor do que sentia, devendo-se a esse crucial pormenor a desconfiança sobre as ideias dele. Ela, por ora, não queria perder a compostura. Toda aquela libertinagem tinha também algo de muito estranho pelo facto de tudo aquilo decorrer sem que tenham sentido necessidade de se envolverem mais intimamente. Sabia que isso iria acontecer quando os dois quisessem e ainda não tinham querido.

Gostava do seu corpo atlético, da sua amabilidade, da tentativa de ser delicado, pois estava habituado a viver sozinho e manter os aposentos em boa ordem, gostar mesmo de cozinhar, ter bom gosto nas suas escolhas, a maior das quais parecia ser ela. Gostava que a adorassem e lhe fizessem assim mimos, que a tratassem como se fosse única. Ele fazia tudo isso na perfeição e parecia adorar fazer aquilo pela maneira leve e energética que o fazia. Tudo corria por aqueles dias de chuva de forma muito leve e descomprometida, embora o comprometimento em cada momento fosse total. Parecia mesmo como nos filmes que viam entardecer adiante.

Luís Sedas teve uma tarde de sossego, como nunca tinha tido. Estava grato por isso, permitia-lhe começar a gerir toda aquela novidade matinal. Permitiu-lhe até ter um mais concentrado do que o habitual, embora se concentrasse parcialmente a pensamentos pessoais. Ainda não fiscalizavam pensamentos, por isso sentia-se confiante e a tarde decorreu com uma estranha calma. Depois das cinco desligava-se daquilo tudo, depois de dizer até manhã já deixara de estar ali enquanto ser. Era o seu corpo que se encaminhava para a sua caminhada, agora a passo o mais possível acelerado, sem atrair atenções devido ao emblema que trazia no casaco dos serviços. Era ainda aquele casaco e aquele emblema que detinham algum poder sobre ele no seu tempo livre, enquanto não chegava e o despia e estava definitivamente no seu mundo, no mundo deles. 

 

De repente, começava a existir vida no seu coração e no seu quotidiano. Reconfortava-o saber que alguém se preocupava com o calçado que levava, ou interessado em saber como lhe tinha corrido o dia. Uma conversa em vez de deveres domésticos. Um ponto de situação em todo aquele turbilhão que se abatera sobre eles, estavam prestes a despedaçar-se um no outro, a deixarem a última réstias das fronteiras que ainda havia entre eles. Sabiam ambos que isso ia acontecer e por isso não tinham pressa. Ele já tinha percebido que tinha esperado por aquilo toda a vida. Que se tinha preparado para quando acontecesse, estivesse no melhor de si, da sua busca de aperfeiçoamento enquanto ser, naquela ideia de que um dia apareceria alguém que se encaixasse sem ser necessário forçar nada, que os dias decorreriam ligeiros e sob o signo da fantasia. O Romantismo dos velhos filmes, dos velhos livros de poetas que Luís ainda possuía, por feliz acaso de uma herança perdida muitos anos. Gente estranha e não muito inteligível. Gente muito subversiva para os cânones. Gente mesmo feliz, nas suas infelicidades.

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7 - A Entrevista com o Psicólogo 

 

Luís Sedas desconfiou de tudo aquilo que estava a acontecer-lhe. Aquela alegria que sentia, preenchia em si algo que agora começava a suspeitar que sempre lhe faltara. Aproximar-se-ia do êxtase se ele não tivesse aquelas substâncias todas no organismo. Desconfiava dos Estados de Espírito ou desconfiava do que sentia. Nas horas que passava sem a companhia da Emilia. Tinham-se tornado quase inseparáveis. Conversavam horas e horas, deitavam-se tarde, ele levantava-se cedo para ir correr e vinha a tempo de preparar o pequeno-almoço. Acordava-a com o as nuvens aromáticas do café, pão torrado com manteiga ou compota e um beijo de bons-dias.

 

Nesse dia levantara-se uma hora mais cedo para ir correr mais tempo. Chovia, mas quando iniciou o passeio era apenas um aguaceiros fraco, que lhe dava a oportunidade de aquecer e depois para ele era indiferente o que chovesse. Depois de atingida a temperatura de serviço, era como caminhar ou falar, desenvolvia uma simbiose entre si e o chão como se fossem o mesmo elemento. Sentia a dopamina a crescer-lhe por si, a retratar-lhe um contentamento no rosto, enquanto o suor lhe escorria pela corpo. Depois aquele treino antevia-se descontraído e vigilante. A decisão de aumentar o tempo de treino visava prepará-lo para a entrevista, que iria ocorrer pelas 10H00 num departamento governamental, no centro.

 

A curiosidade por aquele encontro, a possibilidade de conseguir obter mais informação do que aquela que supostamente estaria disposto a dar, a curiosidade de saber qual o motivo encontrado para a entrevista em si. Chegou 5 minutos antes, anunciou-se a uma secretária de meia idade, vestida elegante e discretamente. O gabinete do Psicólogo parecia um vulgar gabinete de psicólogo. Assim tinha sido determinado pelo Dr. Loppo de Tunes. Queria que parecesse assim. Queria que a sua importância neste xadrez das Autoridades Oficiais passasse despercebida aos entrevistados. Nenhum deles suspeitava do poder que detinha. Nenhum deles soube que fora por causa das suas resoluções depois das entrevistas que tinham sido severamente medicados. O Psicólogo também não.

 

Convidado a sentar-se, o Psicólogo confirmou algumas informações biográficas e médicas. Depois sentou-se quase deitado na poltrona.

 

- Sabe porque está aqui?

- Sei. Por causa da minha irritação no dia 28/12/. Acordei com uma má disposição. A chuva piorou tudo. Veio-se a verificar ser um atraso no envio do Estado de Espírito.

- Mas o que levou a ter uma atitude tão drástica e impulsiva, de pedir a não contagem do dia. De férias.

- O dia de férias vale tanto como um laboral, é vida. Não vejo porquê a estranheza do dia de férias. Nem da entoação. Estava nervoso, mas depois tudo aquilo passou-me e acabei por não reclamar nada.

- De certa maneira sim. Acontece que isso não é uma situação normal, como não foi normal a entoação captada pelas máquinas que monitorizam as chamadas telefónicas. Isto é apenas rotina. Já aconteceu outras vezes atrasar o Estado de Espírito?

- Em duas ou três ocasiões sim.

- Aconteceu alguma irritação nessas alturas?

- Não, que me lembre não.

- E desta vez aconteceu. Isto é apenas rotina, para verificar-mos pessoalmente o cidadão e lhe fornecer-mos apoio psicológico, se for necessário.

- Sinto-me óptimo. Divirto-me com as minhas corridas. O trabalho é exigente mas suportável. Conheci uma rapariga fantástica. A vida corre-me bem. Nesse dia em que sentia miserável troquei um olhar e uma amabilidade de nada com ela. Foi isso que me salvou o dia e me esquecer a reclamação.

- Como? Então a sua decisão de não reclamar ocorreu antes do efeito do Estado de Espírito Aconchego à Lareira?

- Creio que sim, deixei de pensar nisso...

 

Este era o momento em que para o Psicólogo finalmente tinha a certeza de que o seu instinto não o enganara. Havia aqui qualquer coisa... comprazia-se de ter idealizado aquele lugar a fingir que era uma gabinete de um psicólogo. Favorecia que os cidadãos confiassem nele. Escorregavam naquele ambiente informal. Nunca imaginariam que as conclusões daquele homem lhes podia condicionar a vida. Que os podia transformar em quase autómatos, que uma recomendação sua podia significar quase uma lobotomização. Luís Sedas caíra no engodo daquela descontracção. Estava a fornecer mais informação do que aquela que conseguia reunir.

 

- O que é que acha desse encontro o ter dissuadido de apresentar a reclamação?

- Tenho pensado sobre isso. Deve ter-me distraído daquele dia horrível. De ida a uma repartição. Da não dar para ir dar um passeio no último dia de férias. Pelos visto do inverno que causa estes sintomas nas pessoas...

- Em si. Mais ninguém quis apresentar uma reclamação desse nível, ainda por cima de maneira impetuosa.

- O psicólogo é o Senhor.

- Claro que sim. - Nesta altura sorriu. Tinha finalmente um caso com algum interesse ou alguém com quem conversar. A sinceridade das suas respostas, a sua descontracção e o facto de se reconhecerem nele alguns indícios de que pensava de forma fora do formato, ou que o tentava fazer. Que também era inteligente e percebera a determinada altura que estava a dar demasiada informação, sem receber nenhuma, o estava a fazer retroceder. Isto é, ele viera com uma curiosidade de saber o que se passava ali. Não tinha era as técnicas do Psicólogo, nem os seus conhecimentos. Se bem que em termo de saber, ambos sabiam daquilo que faziam. Não sabiam muito do que se passava a montante, na distribuição massiva de substâncias na alimentação. 

 

A vida do Psicólogo era a sua profissão. A vida de Luís Sedas era a Repartição, mas havia nele o desenvolvimento de outras vias que os cidadãos comuns não anteviam. A teoria do Caos. Aquele insignificante atraso na introdução de um Estado de Espírito, seguido de outro insignificante encontro no Fornecimento, colocam o cidadão Luís Sedas a interrogar-se sobre aquilo que andavam a fazer com ele e a sociedade em geral.

 

Corroído pela suspeita de que aquilo que se estava a passar com a Emilia podia ser muito mais grandioso, mas impossível. Não era possível recusar um Estado de Espírito, não depois de ter sido influenciado de forma conforme aos planos de saúde. Não existia maneira de o fazer. Se para descontar um dia era aquele burburinho, iria acordar os mortos se fizesse um pedido desses. Positivamente. A sua única chance era aquele psicólogo de ar bonacheirão e descontraído, mas não sabia se ele o podia ajudar.

 

- É possível viver-se sem Estados de Espírito?

- Claro que sim. Só que é muito pior viver sem eles. Isso não é questionável, como sabe.

- Eu sei que sim. Mas não há excepções, o Sr. vive sob o efeito deles?

- Isso não interessa, não tenho que lhe fornecer essa informação. Mas o cidadão Luís Sedas é capaz de se imaginar a viver sem eles?

- Imagino-me a experimentar. Sabe, desde que estou com a Emilia que suspeito que o que sinto podia ser muito mais poderoso, não fosse a interferência dos Estados de Espírito. Para mim e para ela. Já conversámos sobre isso...

- Ouça, deve manter toda a cautela neste assunto. Pode arranjar problemas muito sérios, fora da minha área, se me entende.

- Ela é de confiança.

- Você é de confiança? - Perguntou-lhe isto com o ar mais sério desde que tinha começado a entrevista. Podia até notar-se alguma tensão. Não era medo. Era finalmente alguma coisa de interessante naquele emprego aborrecido. Alguém diferente. Alguém que chegava a uma parte da verdade do que se passava naquela sociedade e lembrava ao Psicólogo porque é que ele não se interessava por isso, preferindo refugiar-se nas suas pesquisas. 

 

Se conseguisse dispensar aquele tipo do Estado de Espírito, acompanhá-lo-ia depois, clandestinamente, para recolher toda a informação sobre esse facto. Tinha que encontrar um expediente discreto para o fazer, sem ser pelos canais habituais. Lamentava não ter um mordomo como nos filmes, que se encarrega-se de concretizar propósitos como estes.

 

- Como é que você sabe isso, que pode sentir mais o encantamento pela sua companheira?

- Desconfio. Se naquele dia me distraiu daquela manhã horrível e daquela impulsividade de reclamar.

- Se eu lhe propuser viver algum tempo sem o Estado de Espírito, concorda fazê-lo?

- Claro que sim. Não esperava uma proposta dessas, nem ela me parece ser muito oficial.

- Não. E se for possível que isso aconteça, qualquer circunstância negativa deve-me ser comunicada. Eu quero fazer isto para poder efectuar as minhas pesquisas, vai ser uma cobaia minha, entende? Ao mesmo tempo que tem a oportunidade de saber como é viver sem os Estados de Espírito. É um pacto e apesar de ser a cobaia é bem provável que vá ter a sua parte, pela circunstância de estar enamorado. Se correr mal também se pode transformar num inferno, por isso recorre sempre a mim. Se isto for possível. Em breve entro em contacto consigo sob a identidade de Salomão Custóias e comunico-lhe o que houver para comunicar. Não vai aqui voltar nem a mais nenhum departamento governamental. Mas não pode chamar a atenção das Autoridades, como o fez no outro dia.

 

Despediu-se dele com um aperto de mão caloroso. Ambos estampavam no rosto o contentamento deste acordo, gozavam a adrenalina da clandestinidade e da perigosidade das suas acções. Estavam felizes.

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6 - Para ir ter com ela

 

Lá estava ela. Na secção dos produtos embalados. Quinoa, sementes de sésamo e de abóbora, pedaços de Seitan em embalagens herméticas. Variadas espécies de cereais com várias espécies de fruta. O lugar para onde se dirigia. Conferia os preços, ajeitava embalagens, com toda a atenção, alheada do burburinho do estabelecimento. A farda do estabelecimento, verde claro, que contrastava com os cabelos pretos, apanhados. Uma leve maquilhagem disfarçaria qualquer coisa que não interessa a Luís Sedas, assim confrontado com ela. A descontracção foi-se abaixo, como se tivesse sofrido uma queda de tensão, mas recompôs-se e para lá se dirigiu com um sorriso.

- Bom dia. - Ela acordara daquele estado concentrado de preços e de referências para a presença dele. Desculpou-se com o trabalho e dirigiu-lhe um sorriso e disse-lhe bom dia.
- Ando à procura de manteiga de amendoim, sabe onde posso encontrar?
- Ao lado da secção de queijo e manteiga. Fora dos frigoríficos.
- Obrigado. E bom dia. Boas conferências.
- Obrigado, para ti também. - Dirigira-lhe mais um sorriso e fora-se embora para outra secção. Ele atalhara para a secção dos queijos, outra paragem obrigatória da sua lista de necessidades. A matutar no facto dela o ter tratado por tu e se isso significava qualquer coisa.

Ele fazia compras com toda a racionalidade, e gastava tempo a comparar preços e promoções, nas secções que frequentava. Na secção dos queijos um pouco mais. Quando acabou de escolher o queijo lá estava ela. Emilia … dizia na lapela que se colou aos seus olhos, antes de aparecerem os olhos dela, castanhos claros, atrás de uns óculos pretos para o rectangular, uma imagem concebida para o serviço. O que existia para além daqueles olhos não sabia Luís Sedas, mas observou neles uma sede, confirmada por um entreabrir dos lábios, sem pintura, por um assomar de dois dentes, por um abandono a qualquer coisa. Ele estava a levantar-se depois de ter escolhido um queijo creme com ervas aromáticas e um queijo ilha ralado. Não se acomodou:

- Temos que deixar de nos encontrar desta maneira... olá de novo. - disse-o com toda a jovialidade que sentia por a encontrar ali de novo, numa atitude espontânea de contentamento que parecia ser mútuo.
- Pois temos. É isto que faço, persigo clientes.
- Há clientes que decerto não se importam de assim serem perseguidos.
- Há clientes para tudo.
- Em que prateleira poria este cliente?
- Numa daquelas prestes a deixar de o ser... aqueles que tendo a coragem de convidar, se aceita beber um café depois do serviço.
- Eu sou definitivamente esse cliente, já que a conversa se adiantou.
- Posso vir aqui esperar-te ou posso ir ter a algum lugar. E pode ser hoje, não costumo esconder que me agrada que o queiras fazer. Agradas-me toda.
- Ainda bem, é assim que gosto de sentir que olham para mim. Vem cá ter ás nove, se não te importas. Bom dia e bons cozinhados.
- Posso cozinhar para ti. Em vez de gastar dinheiro fora...
- Logo se vê...
- Não, tenho que saber, se for cozinhar para ti tenho que mostrar o meu melhor.
- Tá bem. Não costumo ir a casa de um desconhecido assim de repente, mas inspiras-me confiança. Confio em ti.
- Fazes bem em confiar. Sou uma jóia. Até logo. Boa concentração para esse trabalho chato.
- Obrigado, bem preciso. Foi para isto mesmo que andei a estudar.
 

Luís sai do Fornecimento satisfeito, sem estar exaltado nem perturbado. A maneira natural como tudo ocorrera figura-lhe o tal salto quântico que é necessário existir para quebrar o gelo. Para comunicar olhos nos olhos, para se perceber sem se consciencializar que se pode confiar e avançar com tudo, não só com as palavras, mas com as expressões, igualmente inconscientes que se desenham na cara dos intervenientes. Não só reparara nele como o estivera a seduzir. Em resposta a toda a sedução que lançara no fortuito encontro anterior como neste, ela acedera às suas emanações.

Agora começava uma parte fácil e complicada: a parte fácil era o desafio de lhe preparar algo que a pudesse deixar boquiaberta sem abrir a boca. A parte difícil era consegui-lo não sabendo os gostos dela. Desafio suplementar. A sua tarde iria ser pautada a emissões de rádio pirata e a danças com aromas e sabores, a preparação de uma poção que lhe permitisse desvendar melhor o que estava por trás de todas as boas impressões colhidas.

Este contentamento foi traído pelo pensamento de que poderia estar a experimentar sensações muito mais fortes e genuínas se não estivesse sob o efeito de um Estado de Espírito propiciatório. A sua desconfiança perante aquela situação aumentava. Mais aumento quando recebeu a convocatória para a entrevista com o Psicólogo. Lembrou-se da advertência da Colaboradora do Observatório da Existência e estabeleceu uma conexão entre esses factos. Um Psicólogo era uma entidade desconhecida, mas ele sabia o que fazia e por isso, com a desconfiança que o minava, acabava de receber um convite para poder conhecer mais dos meandros da organização que lhe comandava a vida, inclusive a espiritual. A curiosidade era maior que qualquer receio sobre o seu comportamento.

Depois, ainda que condicionado pelo Estado de Espírito, tinha um jantar para confeccionar, duas almas para transtornar, nem que fosse temporariamente, a sua e a da sua convidada. Colocou os lombos de Seitan, cortados aos cubos, com gengibre, um pouco de sal marinho grosso, alguns pós de noz mostarda que ralou de uma bolota, ervas aromáticas, aspergidas com um pouco de vinagre bâlsamico. Cortou pimento vermelho, bróculos, couve flor, rabanete, espinafres e rúcula. Picou alho e cebola para dentro de um pirex redondo, com azeite.

Enquanto isso mais uma emissão especial da estação Pirata XFM transmitia a gravação de um concerto de Muddy Waters. A energia sensual daquela música fazia-o sentir-se inspirado, com vontade de se exceder. Dançava uma dança mais complicada que aquela física, que podia ser desajeitada, com os xamans distantes de lendas de outros tempos, em ritos propiciatórios, em acolhimentos amáveis, em honras inesperadas.

A mesa era simples e despretensiosa, com o mínimo, a comida viria na terrina de vidro do forno, a iluminação a normal. Incenso de coco para amenizar os cheiros da confecção de comida naquele T0. Para sobremesa manga avião coberta por natas e uma camada de suspiros e nova camada de natas, com raspas de chocolate negro e bagas goji para decorar. Para beber chá Rooibos fresco ou vinho branco, que podia refrescar para o caso de ser necessário.

Depois ele. Um conveniente banho e uma roupa casual. Não era nenhuma celebração, não esperava mais do que conhecer a Emilia, captar o que pudesse, deixar que tudo continuasse a acontecer. A refeição divinal apenas uma graça a quem termina o seu dia de trabalho.

Quando a foi buscar, pontualmente, ela já se encontrava à sua espera. Pareceu notar-lhe alguma ansiedade ao olhar cá para fora, como se temesse o seu não aparecimento. A conversa durante o caminho foi sobre miudezas do trabalho dela, aquelas marcas do dia que ficam como testemunhas de que estivemos mesmo lá. O seu interesse era genuíno, apesar de se tratarem de miudezas.

O jantar foi servido ao som da mesma música que estivera a ouvir, tinha mudado para um compositor chamado Duke Ellington, de que nunca tinha ouvido falar. Ela não pareceu incomodada nem demasiado surpreendida, apreciou com genuína surpresa e com gosto as misturas de sabores. Servido o café de cafeteira no sofá ficaram a esclarecer-se e a contar histórias de si, à vez, num divertimento que durou até de madrugada. Para Luís Sedas era hora de voltar ao mundo real, sem se aperceber de todo o tempo que havia passado, do que sabiam mutuamente um do outro naquele primeiro encontro. De não se ter surpreendido em combinar ir ter com ela à tarde para isso mesmo, para ir ter com ela.

Precisava de um banho, talvez de uma lambada bem assente na cara, de um banho frio, de dormir é que não precisava. Sentia-se óptimo, sentia-se coberto por uma pele diferente, mais aberta, mais receptiva. Enfrentar aquele dia de trabalho não iria ser fácil. Regressar de onde estivera. Conseguir passar despercebido. Acabar o dia para voltar a estar com ela.

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5 - O Suspeito Sem Interesse

  

Os supermercados do Fornecimento não se encontram abertos ao Domingo de tarde. Naquele inesperado devaneio matinal tinha-se esquecido da lista de supermercado, mas o que mais o incomodava era o facto de não poder cruzar-se com aquela Colaboradora. O sua intuição já lhe havia fornecido a ideia de que se tratava de uma rapariga descomprometida. Não precisara de activar a identificação dela. Não queria ir por aí, o que o estava a interessar era a maneira como se havia de insinuar sem se mostrar interessado.

 

O jogo da sedução primeiro, antes de avançar com alguma proposta prática. Sondar o interesse para além daquele sorriso e da delicadeza. Alguém com vontade de ir mais além, de «fazer o que ainda não foi feito». Uma estratégia pensada em provocar acontecimentos, a insinuar-se sem se dar conta, observando tudo. Se tivesse que fazer algum avanço falo-ia por conta do momento, se a situação propiciasse ulteriores desenvolvimentos, a disponibilidade estudada. Para além de descomprometida, sem filhos a cargo. Não usava pulseira disso.

Aquilo que em linguagem de velhos livros de animais seria caça furtiva. O processo de conquista mais que a conquista? Caçar por prazer. Sem ser para comer. Caçar para o prazer sem a reprodução. O prazer de caçar e o prazer de comer. Pão de 7 cereais. Pão divino adivinhado nas formas magras da colaboradora, no ventre liso imaginado. Em todas as delícias que um cérebro cheio de informação pode conceber. Em que um corpo pode adivinhar. Um sorriso de antevisão.

Era com isto que se podia entreter visto o supermercado estar fechado e mesmo que estivesse aberto, não ter a certeza de lá se encontrar a Colaboradora. Um fim de tarde dedicado a ler ou a ver filmes de outro tempo, a preto e branco, onde supostamente havia florestas e pradarias, desfiladeiros, picos cheios de neve, guitarras que choram e beijos românticos.

Luís Sedas desconfiava que era possível sentir estados de felicidade superiores aos fornecidos pelos Estados de Espírito. Tal desconfiança ocorrera por um atraso no envio de um Estado de Espírito que o colocara numa situação insustentável de perturbação. Tal perturbação fora aquietada por aquele encontro fortuito com a Colaboradora. Resenhara nele a dúvida se não estaria a viver numa sociedade convenientemente medicada e orientada, sem livre arbítrio, sem direito a sentir a felicidade máxima, ou o desgosto máximo. 

 

A desilusão e o desapontamento, a alegria e o encantamento. O fogo interior dos actores de filmes a preto e branco, pouco vistos, fora de moda. Sociedade de amabilidades domesticadas através de Estados de Espírito, comandada por entidades obscuras, com poderes incomensuráveis. Sociedade domesticada. Sem chama, sem paixão, sem alegria incontida. Sem fantasia.


A fantasia que uma máquina não precisa para coligir listas de supermercado, contactos, trocas de mensagens escritas e orais, documentação clínica e escolar, certidões oficiais, relatórios das mais variadas entidades, publicações de infância e adolescência, bases de dados de registo criminal, cadastral. O registo estradal como peão.

É uma máquina, um conjunto incansável de algoritmos programados para executar aquelas tarefas com toda a eficiência de coveiros que tapam uma sepultura. Sem achaques, sem baixas médicas, sem se enfadar, sem se considerarem miseráveis. Com toda meticulosidade pesquisam, recolhem, catalogam, separam, depuram, apresentando ao seu congénere mais complexo, a mainframe Pedro Nunes, os seus resultados.

No Caso Luís Sedas estes pesquisadores não demoraram muito tempo nas suas funções porque no passado do visado não havia nada de anormal, não existiam linhas truncadas em relatórios, não havia discrepâncias em nenhuma fonte analisada. Os dados íntegros, as fontes a confirmarem-se dignas, nenhum registo de rebeldia. Do presente não resultava actividade relevante. Nada foi encontrado nas pesquisas em bases de dados restritas nem das sub-mundo digital, morto, cemitério da Web de outros tempos.

Pedro Nunes recebeu toda aquela informação mais rapidamente do que o habitual. Registou isso. Ter-se-iam enganado? O Psicólogo e Ele? Havia nele o que num humano seria decepção, por aquela informação não trazer uma única indicação que pudesse ser investigada. 

 

O centro decisório recomenda-lhe que se abstenha de comentários. Tudo aquilo é para ser digerido pelo Psicólogo. Apesar dos poderes computacionais que possuia, da capacidade de alocar todos os servidores da nação para uma tarefa sua, para aceder a tudo o que pudesse ser acedido por uma construção como ele, não passava de um mordomo solícito, a quem era permitida uma familiaridade se for irónica e caia bem.

O Psicólogo decidia tudo. Não tinha que prestar contas das decisões que tomava. Não era avaliado. De vez em quando era substituído por motivos de saúde. As raras pessoas que o conheciam enquanto isso eram os cidadãos que convocava para entrevistas. As suas opiniões na governação eram transmitidas dali por tele-conferência. 

 

Ele não ambicionava a mais do tinha ali, senão a encontrar algum caso que fosse mesmo interessante. Também não gostava de ser contrariado, de modo que em vez de arquivar o Caso Luís Sedas, decidiria convocá-lo para uma entrevista. Seria a sua avaliação final. Era para isso que ali estava, para proferir a decisão final, baseando-se em razões que qualquer máquina não conseguira possuir. Como intuição ou teimosia. A teimosia pode produzir resultados. Ou a intuição.

Apesar de não conhecer pessoalmente quem governava as outras instâncias governativas, a sua função deixava-o em certos dias irremediavelmente só naqueles aposentos confortáveis, sem qualquer presença humana, uma vez que a natureza reservada da sua função não permitia ter um secretário técnico. 

 

As entrevistas que podia permitir-se mitigavam essa solidão, se bem que a maior parte das vezes apenas aumentassem o tédio do quotidiano. Eram realizadas fora daquele espaço, apenas era frequentado por ele pelo robot Electronia, versão escritório. Uma prisão dourada, um local inóspito onde observava a saúde mental pública e a dirigia com recomendações gerais, sem se preocupar com questões práticas de substâncias ou da maneira como são administradas, sem enfadonhos testes a novas substâncias.

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Recomendação sonora:  Celebration Day - Led Zeppelin

 

4 - Estava a ser investigado

 

Aproximava-se o dia da Inspecção Humana Obrigatória. Luís Sedas, apesar de seguir com rigor as indicações da Política de Saúde Preventiva, preocupava-se com esse exame geral, porque havia sempre a possibilidade dele acrescentar alguma anotação no seu boletim de saúde. Não lhe interessava ter nenhuma nova doença, ou indícios do seu aparecimento. Em geral não lhe interessavam aborrecimentos, sobretudo aqueles que podia evitar.

 

Desde o episódio da reclamação para o Observatório e o envio de urgência do Estado de Espírito Aconchego à Lareira, dispensara-se à habitual sessão de meditação dominical, para a manutenção dos Chakras, uma sessão especial dominical preparada pelos Serviços Espirituais, em parceria com uma marca de vegetais liofilizados.

 

Aquele domingo de novo tempestuoso impedia-o de ir correr para o parque. Por isso sintonizou uma estação pirata de rádio, que transmitia velhos êxitos de uma música que na sua altura chamavam Blues ou Rhithm and Blues. O som não tinha a qualidade das emissões oficiais, mas Luís Sedas preferia isso ao Pop de plástico – «música para máquina de escrever», «música para elevadores» - que as estações oficiais transmitiam. A energia e a alegria daquela música deixavam-no mais bem disposto.

 

Tão bem disposto que se recordou da Colaboradora do Fornecimento e de que havia uma relação entre aquela música e recordar-se dela, ondas de calor e expectativa não conscientes. O fio de um aconchego imaginado nos lençóis térmicos daquele domingo chuvoso, em que podia permanecer na cama, ao quente, sem nada para fazer senão devanear. Já revira no dia anterior as indicações de auto-exame prévio e tudo lhe parecera em conformidade para a Inspecção Anual. Não podia preocupar-se com aquilo que não podia saber. Não sabendo, não lhe podiam exigir quaisquer responsabilidades em comunicar. Estava fora de questão multarem-no por uma anotação grosseira, como ter hipertensão por causa do exagero do sal.

 

Naquela manhã a emissora pirata transmitia um especial sobre uma agremiação musical chamada Led Zeppelin, uma luz naquele negrume, um acompanhamento para a chuva que se ouvia claramente estatelar-se nas vidraças exteriores das janelas do prédio. Ele tinha sempre os vidros de forma translucida para despertar com os primeiro raios naturais de luz, expondo-se ao negrume daquele dia ou ao sol forte de outro dia. Aqueles vidros incorporavam um ecrã entre o exterior e o interior, de modo a funcionarem como TV e podiam ser programadas para transmitir um amanhecer à meia noite (para os trabalhadores nocturnos).

 

Havia preparado um pequeno-almoço para si composto de pão de vários cereais, com compota, queijo e sumo de laranja. Café forte de cafeteira. Por isso não tinha fome para almoçar. O devaneio daquela manhã de inverno prosseguiu. As emissões de rádio pirata não eram monitorizadas pelos serviços de audiometria, dado serem obsoletas frequências que os modernos equipamentos não reconheciam, por isso podia apreciar aquela música que o deixava muito mais entregue à fantasia, sobretudo com a colaboradora e à fantasia em geral, inqualificáveis pensamentos, filmes inventados na hora, recordações de um tempo diferente, vibrações naturais, a saudade de algo que não se teve. O vazio de não se sabe de quê. As paredes eram à prova de som e por isso os seus vizinhos não podiam ouvir o que sintonizava.

 

No patente hedonismo daquela atitude existe um bom indício de que Luís Sedas é um cidadão inconformado com aquilo que escolhem para si. A sua revolta manifesta-se na fruição de músicas desadequadas para a manutenção de uma atitude de aceitação, condicionando as emoções de modo a serem diferentes daquelas fornecidas pelos Estados de Espírito. O seu interesse por estados de espírito, aqueles não induzidos pela Psicologia Oficial, uma manifestação grosseira de questionar a ordem pública.

 

No domingo modorrento dos lençóis térmicos e do pequeno almoço saudável, Luís Sedas não desconfiava que a sua rebeldia tinha sido detectada, pelo Pedro Nunes, e pelo Psicólogo. Da pior maneira para o seu caso: tinha finalmente acendido a chama de um caso com interesse para o Psicólogo, tinha despertado no Pedro Nunes algo que num humano seria curiosidade, mas num programa informático é ainda desconhecido. Não existem Inteligências Artificiais senão nos livros de ficção científica.

 

O despacho proferido pelo Psicólogo para que o Pedro Nunes iniciasse a busca alargada das bases de dados, incluindo a Deep Web, à qual só acedia quando procedia a investigações criminais e quando investigava suspeitos de rebeldia, já se tinha iniciado. Tarefa morosa de pesquisa e recolha. Demorava dias até que a informação seleccionada fosse extirpada de redundâncias, classificada a fidedignidade da fonte, ordenada por data, apresentada por assunto e apresentada ao Pedro Nunes, pois todo este trabalho era efectuado por servidores ligados ao Pedro Nunes, alguns apenas ocasionalmente, quando a natureza da missão assim autorizava.

 

Já tinha sido iniciado esse rastreio. Bits de informação a serem acumulados enquanto Luís Sedas se revolve na preguiça do seu corpo, a deixar-se raiar por curiosidades pouco recomendáveis para o seu estatuto de cidadão, sem se preocupar com a Inspecção Humana Obrigatória, que tinha agendada, sem dar importância ao aviso que lhe fora feito sobre a entoação da sua voz na reclamação que pretendia apresentar. Sem a mínima possibilidade de intuir da importância que tinha ganho para entidades distantes. Estava a ser investigado.

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Procuro uma janela para a noite, mas só a chuva se intensifica, os blues afogados pela intensidade com que se projecta nos vidros. Procuro uma posição para  sentar esta resposta súbita da chuva, a condenar-me a permanecer neste limbo, esquecido dos princípios da ergonomia, agradecer não ter que me expor à sua veemência. Olhos cansados de píxeis, rabo dorido de sentar os momentos desleixados do acampamento.

 

Neste momento não há mais que isto, não há qualquer mistificação, não é preciso nenhuma redenção. Já de chega de versos, daqui se vislumbra o que pode ser feito, o que tem que ser feito. Não são desejos estapafúrdios, são resoluções. É o rabo dorido. Não faltar nada de relevante no sossego geral e particular. A paisagem ter as figuras minúsculas. O desapontamento não gerar raiva, tudo ser humanamente possível de ser feito. Aqui não são admitidas culpas, estou além do bem e do mal, pendurado num penhasco, numa escalada vertical, a confiar a minha vida aos grampo que cravo, sem dispensar os estigmas, sem iludir os excessos do sentir, a ir mais além, à compreensão dos fenómenos estudados, à formulação de novas perguntas;

 

Não é para onde vou, que desconheço, é como vou, que releva.

 

Esqueci-me como foi o ano passado. A consulta ao diário não regista nada senão fotos. Não passei de ano, estou em 2014? a celebrar o quê? 

 

Sem celebrações não se pode passar de ano? 2014? Numa falsa descolagem, um equívoco sem graves consequências, embora os anos tenham decorrido e não reste arrependimento, para querer voltar atrás, podia custar-me despedir deste ano, mas este ano vai estar nos próximos, como nutriente, sem a delapidação habitual, cálculos mentais e esperteza de rua. Crónicas para além do razoável. Olhos demasiado activos. Não é isto pouco nem muito, basta para quem não sabe mudar de canal, se afeiçoou a esta maneira de incapacitar a nostalgia, de aquietar as sombras, a marcar o ritmo nas doses recomendadas, no equilíbrio firme de um chão sólido, de quatro paredes para não se constipar, sem qualquer rigor, sem qualquer vigor fora de uso, a exercitar a mente, a somar as parcelas de cabeça, sem precisar de ser indispensável. A semi-cerrar os olhos das teclas, a procriar indistintamente, a querer ter corpo para o fato. - «Não te vás já embora, ainda não são horas de jantar.»

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O ano passado, por esta altura, tinha a sua veia entregue ao heterónimo, na oficina nocturna de um programa real de Aconchego à Lareira, num lânguido lamber de feridas abertas pelo desapontamento. É por isso que não se lembra da passagem Gregoriana do tempo. Ainda não sabia que, ao entregá-la ao Heterónimo, iria encontrar o elo perdido da criação, para se reunir de novo a ele mesmo. 

 

Ainda não dava valor nenhum a coincidências, tomando-as como tal, sem qualquer código que pudesse interpretar os eventos. Desejo físico de pintar, desejo físico de esculpir. Os sinais estavam todos lá, mas o seu alheamento não permitia vê-los, não conseguia ir mais além no que conhecia de si através da razão.

 

Sulcos, cores primárias, odores de seiva... mãos preguiçosas de artista, mãos e tempo ocupadas de artista, a esculpir uma conspiração para mudar a vida dele, a reinventar-se, a chamar à atenção, a descarnar a solidão, expondo-a sem a expor, sem se levar a sério, maravilhado com a frequência da exposição. Aquele Hamlet'i transcendera-se e voltaria a repetir os feitos mais tarde. 

 

Por isso as celebrações não contam, estava a urdir artimanhas para se agarrar a um futuro diferente. Sem saber que o fazia, sabedor do ardor que lhe queimava o coração, da febre do seu espírito embevecido com cores e formas, com casacos pintalgados, cabelos desgrenhados, unhas por tratar... todas as dúvidas no ar, tudo por fazer, tudo adiado, tudo o que ousara prometer a si mesmo por acontecer, em desesperado salto quântico para inventar uma nova linguagem para comunicar com quem lhe pudesse fornecer as respostas.

 

Encontrá-la-ia um pouco mais adiante. Ele sabia que era a última cartada antes do desespero. Por isso se iluminou daquela maneira, por isso se deixou ir na cantiga do artista. Arcava  esse papel com gosto, com afabilidade, com divertimento. 

 

Por isso se imiscuiu no ambiente daquele Meeting Point, por isso se embrenhou nas faldas da Serra, em amanheceres iniciáticos, na fase final da cerimónia, no  conceder a si dons de xamanismo em bancos de carácter Africano, de aprendiz de feiticeiro, ali exposto em máscaras.  Cerimónia privada em espaço publico. Um grito no interior. O grito que fez despoletar o acontecimento. Uma cerimónia bem feita, com todo a confiança que restava, com toda a amabilidade possível, com toda a urgência.

 

Revolver da lava dos acontecimentos. Agora faz todo o sentido relatar porque os relatórios são favoráveis com a pincelada de perfeição que puderam não ter tido. Que haviam de ter mais adiante, isso é certo. 

 

O Tocador de Djembé a surgir de um horizonte nublado de promessas, finalmente Godot. Rápido e mútuo conhecimento. As madrugadas de um tempo ímpar. Tudo assinalado, por aquele que tinha confiado às mãos do outro fazerem o que não conseguia com o seu pianar de teclas. Os mantras de solidão. Os mantras de silêncio. Meditar ciclando sem rumo certo. Ir mais além no mistério, tacteá-lo sem receio de ser mordido. 

 

Uma amizade feita com tempo roubado, apressada, um tempo magnificamente aproveitado, quem nos  momentos certos indicou a direcção ... para que ocorressem anéis de eventos, rasgou-se o tempo de par em par e todas as mordomias foram servidas, com a dose certa para que fosse total o deslumbramento mútuo. 

 

Nestes preparativos é natural que não se lembre da passagem do tempo Gregoriano. É natural que o celebre desta forma depois de ter dado certo. De começar a encarar os acontecimentos de modo diferente, do presente ser daquela semente lançada ao vento, uma garrafa deitada ao mar com um pedido de esclarecimento.

 

Disto ser a versão romanceada dos eventos, a maneira como se quer recordar deles. A sua versão dos acontecimentos. Contar uma história por linhas travessas, em busca do tempo aproveitado, em busca do merecimento de se ter mantido à tona de si, com o colete de salvação das auto-descobertas, a preparar-se física, química e espiritualmente para o esclarecimento da verdade.

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2016

01.01.16

Um feriado chuvoso, propicio para o descanso dos excessos da noite anterior. Um dia propicio ao lavar dos cestos de qualquer coisa. Um divertimento colectivo?

 

O Pedro esteve bem, a sua poesia comoveu a passagem do ano, a sua música foi inspiradora: «ilumina-me... olha bem para mim... estou aqui... iluminem-se.» A massa humana compacta, a colar-se num momento colectivo de partilha de corpos, como se aquilo fosse a soma da energia de cada um dos presentes a fluir por todos eles. Por causa da música, por causa do amor, por causa de se festejar uma contagem qualquer de tempo.

 

As lágrimas ameaços de chuva ou mesmo de alegria. Do momento cosmopolita de toda aquela cidade em modo festa. Dos fogo de artificio deslocalizado. Dos matagais de jovens que borbulham nas ruelas, nas ruas outrora sórdidas, sujas e mal frequentadas. O testemunho de uma cidade que saiu do armário para um esplendor internacional.

 

Era com tudo aquilo que não contava, com a arte e a presença em palco do Pedro Abrunhosa e da sua banda, da alegria geral, artificial ou natural, do aperto colectivo. A celebração do bem que foi feito, a continuação do bem que foi feito, do bem que pode ser feito. Uma aproximação sem cautela ao limite bem aproveitada.

 

 

Podia ter-me dispensado ao fim de festa, àquelas toneladas de lixo, às ruas pejadas de garrafas e de copos, que começavam a ser limpas enquanto canções pretensamente gregárias continuam a gregarizar, enquanto outros(a) gregarizam os excessos, a alegria artificial de que alguns julgam necessário socorrer-se para se divertirem (porque ainda não aprenderam a descontrair-se?).

 

O êxtase quebrado, a função de contar toda a verdade. Já não era como ser abençoado que ali caminhava com pouca desenvoltura, o registo desolador daquele lixo, da alegria e confraternização que as pessoas não demonstram no dia dia a dia, esquecidas as buzinadelas e os atropelos, as traições, os desaforos? Estariam todos dopados, de maneiras diferentes, de poesia, de fantasia, de sofreguidão, de um dia de carnaval sem máscaras.

 

Aquele fim de festa bem diferente do que esperara encontrar por assim atravessar aquela noite, numa cidade única, num contexto único, à procura de um aconchego qualquer, de um epífenomeno suplementar. O passatempo a pretender mais, a noite dorida dos passos palmilhados. Para ser lembrada nesta moldura, notas de rodapé ao acontecido.

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