Para Fanecas Eustáquio, a arte de bem viver tinha no expediente de saber aproveitar uma das suas mais altas criações. No geral e para todas as circunstâncias. Se ia a um local distante e tinha que resolver dois assuntos, não ia duas vezes, tentava ir uma vez e resolver os dois, de preferência satisfatoriamente. Ou três, os que requeressem a sua resolução. Os que fosse possível resolver.
Assim procedia no aproveitamento dos lixos domésticos, aproveitando o orgânico do lixo para compostagem. A arte da vida numa vida enfeitada e rotinada para encaixar em princípios de equilíbrio. Se tinha um ramo de flores para entregar a alguém que não estava, não o ia deitar fora, valia o sorriso de outra pessoa. Fanecas gostava de ser magnânimo. Era capaz de ceder um pouco do seu conforto para compensar algumas das trapalhadas que fizera na vida. Não sendo as decisões que contam, terá sido a maneira como as terá executado, que foi atabalhoada e aumentou a extensão dos danos. Tomara resoluções firmes quando já era esperado que não o fizesse, embora o horizonte dessa decisão tivesse pairado desde sempre. O Fantasma que atormentava Antígona. A quem atribuía toda a culpa dos seus dessa decisão. Uma Antígona de empréstimo, para dar respeito à personagem e lhe conferir a aura de importância que passa a desempenhar, merecidamente, nesta história.
Na procura do caminho desconhecido para a felicidade, ou para a perdição, Fanecas procurava as leis não reveladas dessa arte de viver, como o caminho para ela. Maximizar o proveito. Proveitos não materiais. Na sua ânsia de descobrir traía-lhe as previsões. Esqueceu-se que os sarilhos, as confusões, os imbróglios, também se juntariam por defeito de para lhe travarem a paz de espírito. Agora tinha-os todos ao mesmo tempo a pedir aquilo que julgam ser o seu quinhão. Agora tinha diante de si, não uma amador do proveito, como ele, mas um verdadeiro profissional, de linhagem, para lhe cobrar um Sonho que lhe havia cedido. Aquele mundo que Deus tinha inventado para se divertir estava ali a pedir-lhe contas.
Foi quando se viu assim num imbróglio que conheceu o outro lado dos resultados desta proposição do aproveitamento. A sua vida imitava a literatura? De repente era a sua vida que podia inspirar uma opereta, com todas as contradições que se apresentam aos homens e mulheres. Com todas as teias de fatalismos de pessoas cientes dos seus propósitos. Pessoas capazes, no entender dele, de passar fome para manter algo que considerem precioso. Afinal ele era mais desprendido mesmo do que julgava. Da fome desprender-se-ia sem dificuldade. No entanto, não podia naquela opereta, deixar que o papel fosse o de ficar recordado como o estroina, o bronco, ou como alguém que fora magnânimo com aquilo que não tinha ganho com o seu esforço. Antígona culpava o Fantasma de lhe arruinar o Sonho.
Fanecas não insensível ao ponto de não reconhecer que a forma como executava as suas decisões causava grandes desgostos aos outros. Querer ser magnânimo seria a forma encontrada por ele de demonstrar o verdadeiro desejo de paz, de resolver tudo. De ficar quite a quem tinha reconhecido causar mal. Mas isto é uma opereta e fazê-lo ia ter o efeito contrário em outras pessoas a quem tinha igualmente causado desgosto no passado. Contradições entre o que sentia e pensava, insanáveis.
Não existe a possibilidade de alterar o modo como as outras personagens sentem os desgosto que lhe provocou. Nem a leitura que fazem dos seus comportamentos. Ele é apenas uma personagem. Apenas o Autor tem possibilidade de o fazer. Esse nunca fala com ninguém e pedir-lhe uma alteração de uma linha no guião não é provável.
Antígona vê a janela de oportunidade de causar dano ao fantasma. Numa luta tão feroz quanto subtil. Ataca de surpresa, usa de prerrogativas conseguidas pela aliança com o Vencedor. Aquele que vence sempre, por isso tem esse nome. Ao mesmo tempo aproveita e atinge Fanecas arrebatando-lhe o Sonho, quando ele o mostrava para o tentar passar a alguém capaz de o sonhar. Ele que oferecera de boa fé o que tinha em prol dele, e agora via a amabilidade transformada em golpe de teatro, a personagem atingida pelo desgosto tentava voltar, reclamando o que não era dela, ou cobrando a afronta. O seu aparecimento súbito faz parte da trama genial do espectáculo que é a vida. O actor convocado para suprir a falta, o Porteiro, ou o Ponto, não sabem o guião, como habitualmente, sabelo-ia o Actor se fosse a participar deste espectáculo hoje. A sua contribuição para a trama será sempre condicionada pela suas próprias limitações de não-actor.
Aquilo que parecia ser um acto simples de desprendimento e de mudança do curso da vida, assumia os tais contornos complicados que dão profundidade a esta narrativa. Eleva-se à categoria de ópera pela intensidade dos sentimentos primordiais que convoca, mistura o material e o intangível. E tem o ritmo dramático certo para que as personagens sintam a gravidade do momento. Nem que seja por respeito ao Fantasma, não aqueles que guiam noite fora Fanecas na procura de uma solução para o bem de todos e adormecer na angustia do insucesso, mas um Fantasma que só existe nos relatos indirectos de Antígona, no qual Fanecas não crê, embora leve muito a sério que ela acredite.
Poder ressarcir os ofendidos podia ser um acto de libertação, se o poder para isso residisse na sua vontade. Fanecas temia que o seu comportamento futuro, no papel que desempenhava, fizesse dele cada vez mais o tipo que mantém o interesse em alta, que provoca terramotos com as decisões. Quando nunca tinha pedido tal poder. O Ponto fora repescado à última da hora para desempenhar este papel, ainda estava atónito pelo rumo do guião. Não augurava bom futuro àquela personagem, no sentido de acabar redimido do sofrimento causado devido à sua inabilidade para se adaptar ao mundo, nomeadamente este da ópera.
Ele quando muito gostaria de ser o Ponto ou de fazer limpezas. Ver-se assim cooptado de surpresa para tão altas performances. Ter que enfrentar o poder renovado de Antígona, que reclamava compensação pelos danos sofridos, conivente com o Vencedor, o impávido de serviço. Aquele que não altera a beática atitude de descontracção, sereno assistente a toda a trama, porque sabe que qualquer que seja a sorte do personagens, fica sempre sempre a lucrar. É por haver assim personagens nas óperas e indivíduos, na vida real, que alguns florescem tanto e há tanto tempo.
Fanecas sentia-se duplamente penalizado. Por pertencer aos que iriam sempre perder e ter a consciência amarga disso. E por saber que naquela conjura o Vencedor iria por trair igualmente o sonho dela, depois de darem cabo do Sonho de Fanecas. Desconhecia neste ponto do enredo todas as motivações de Antígona. As que estavam para além das que eram notórias e não precisavam de ser anunciadas. Daquelas que nem ela teria consciência de animarem os seus firme propósitos. Sendo uma situação com várias incógnitas, chegava a temer que o Autor lhe destinasse um acto tresloucado, para conferir emotividade à narrativa.
Fanecas podia ficar refém da motivação de lavar a sua honra. Embora não fosse muito dado a dar importância a alguns chavões, o facto de se sentir atacado de surpresa e do inimigo ganhar vantagem por ora levava-o a defender-se como podia, esperando que Antígona não quisesse com aquilo que considerava lavar a sua honra, despoletar nele um desejo insensato de deixar aquela vida de arrumador de pessoas atrasadas para figurar entre os homens ridículos que se desgraçam com atitudes imprensadas, em que deitam tudo a perder, vítima da capacidade que o mal tem para animar as pessoas para si de maneira inopinada. Temia pela sua capacidade de resistir. De não ser capaz de manter-se na órbita da racionalidade e da auto-preservação. Já que não capaz de levar por diante nenhuma filosofia de vida, prática, que o conduzisse a uma existência pacata de coleccionador de cicatrizes. Conformava-se, cansado já desta trama, nesse destino de velho cão briguento que lambe as feridas, no descanso de ter abandonado as aventuras em que se metia, passado o tempo em que as energias desordenadas o tinham como presente em todas as batalhas, valessem ou não a pena. Precisará este cão de ter memórias para se distrair, enquanto lambe as feridas.
Neste ponto, em que todos os cenários estão lançados, Fanecas permanece ainda assim confiante de que escapará a um desfecho dramático. Que não tem o poder de remir um mal sem desencadear outra sorte de acontecimentos, de indefiníveis contornos, a perpetuar danos irreparáveis com a sua conduta. Sente-se no meio de uma luta que não convocou, para a qual não se preparou. Os seus sentidos estão apurados agora, uma vez que as ameaças são ameaças reais, daquelas que provocam sensações indesejáveis nas tripas (ou arrepios de frio violentíssimos), e não quer fornecer ao mundo o espectáculo da sua idiotia. O facto de sentir aquele ataque como traiçoeiro, pica-lhe o orgulho que ainda sente. Um orgulho que lhe parece legitimado pelo esforço árduo de enriquecer aquele Sonho que é última réstia de verdade que existe nele. Terá que impedir que façam do seu Sonho uma arma.
Querer à viva força um Sonho, na sua essência, legítimo e verdadeiro, para o transformar num pesadelo era, ainda assim, coisa que os fracos recursos de que Fanecas podia empregar, tentava utilizar para impedir, custando-lhe não a honra, mas mais dissabores mais prosaicos. Fanecas convocara a sorte. Tentara ainda passar o testemunho do Sonho para alguém o sonhar como ele desejaria ter sonhado. E ao mesmo tempo livrar-se de vez dessa tirania do pesadelo que agora se avizinhava. Pudesse ele não ter medo de pesadelos. Quem tem medo de Antígona?